O fim da impenhorabilidade do bem de família?

O sistema jurídico brasileiro pode estar prestes a passar por uma significativa reestruturação no que tange à responsabilidade patrimonial. O projeto de reforma do Código Civil (Projeto de Lei nº 4, de 2025) traz propostas que alteram profundamente as regras sobre quais bens do devedor podem ser utilizados para quitar dívidas, com especial destaque para a introdução do conceito de “patrimônio mínimo existencial”.

As mudanças nas regras de impenhorabilidade

O eixo dessa transformação é a proposta de inclusão do artigo 391-A no Código Civil. Este dispositivo visa estabelecer um núcleo de bens e valores essenciais à subsistência da pessoa, da família e da pequena empresa familiar, tornando-o “intangível por ato de excussão do credor”, salvo em casos de dívidas de natureza alimentar.

A redação proposta pelo Projeto de Reforma do Código Civil é a seguinte:

Art. 391-A. Salvo para cumprimento de obrigação alimentar, o patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar é intangível por ato de excussão do credor.
§ 1º Além do salário-mínimo, a qualquer título recebido, bem como dos valores que a pessoa recebe do Estado, para os fins de assistência social, considera-se, também, patrimônio mínimo, guarnecido por bens impenhoráveis:
I – a casa de morada onde habitam o devedor e sua família, se única em seu patrimônio;
II – o módulo rural, único do patrimônio do devedor, onde vive e produz com a família;
III – a sede da pequena empresa familiar, guarnecida pelos bens que a lei processual considera como impenhoráveis, se coincidir com o único local de morada do devedor ou de sua família;
§ 2º Considera-se bem componente do patrimônio mínimo da pessoa deficiente ou incapaz, além dos mencionados nas alíneas do parágrafo anterior, também aqueles que viabilizarem sua acessibilidade e superação de barreiras para o exercício pleno de direitos, em posição de igualdade.
§ 3º A casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade, considerado o valor do preço de mercado do bem, a favor do devedor executado e de sua família.

Conforme o texto proposto, esse patrimônio mínimo seria composto por:

  1. Renda mínima: O valor correspondente a um salário-mínimo, recebido a qualquer título, e os valores de assistência social pagos pelo Estado.

  2. Moradia: A casa de morada, desde que seja o único imóvel no patrimônio do devedor e sua família, podendo ser penhorada em caso de ser de alto padrão, mantendo-se a impenhorabilidade apenas sobre 50% do valor do imóvel.

  3. Propriedade rural: O módulo rural, caso seja o único bem imóvel do devedor, onde ele resida e produza com sua família.

  4. Pequena empresa familiar: A sede da pequena empresa, se coincidir com a única moradia da família, juntamente com os bens que a lei processual já considera impenhoráveis.

Adicionalmente, o projeto prevê uma proteção ampliada para pessoas com deficiência ou incapacidade, considerando como parte de seu patrimônio mínimo os bens que garantam sua acessibilidade e o pleno exercício de direitos.

A proposta também ajusta o texto do artigo 391 do Código Civil, que passaria a afirmar que “pelo inadimplemento das obrigações, respondem todos os bens do devedor, suscetíveis de penhora”. Essa alteração, na prática, apenas positiva na lei uma interpretação que a doutrina e a jurisprudência já aplicavam, alinhando o Código Civil ao Código de Processo Civil (CPC).

O possível futuro da proteção ao bem de família

A proteção conferida ao lar do devedor é um dos pontos que sofreria as mais relevantes alterações. A análise do projeto revela uma reconfiguração do instituto do bem de família, com as seguintes implicações diretas:

  • Restrição da proteção ao imóvel único: A proposta limita a impenhorabilidade da casa de morada à condição de ser o único imóvel no patrimônio do devedor. Trata-se de um critério mais rígido que o atual, que protege o imóvel residencial independentemente da existência de outros bens imóveis em seu patrimônio.

  • Aparentemente, o fim do bem de família convencional: O projeto sugere a revogação dos artigos do Código Civil que tratam do bem de família convencional (arts. 1.711 a 1.722), aquele instituído por ato de vontade do proprietário mediante registro em cartório.

  • Incerteza sobre o bem de família legal: A proposta é omissa em relação à Lei nº 8.009/1990, que instituiu o bem de família legal (a proteção automática que incide sobre o imóvel residencial). Essa omissão gera uma dúvida crucial sobre a coexistência das novas regras do Código Civil com a legislação especial. Caberá à doutrina e à jurisprudência definir se a nova regra geral se sobreporá à lei especial ou como ambas serão harmonizadas, um ponto que demandará cuidadosa análise para garantia da segurança jurídica.

  • A relativização da proteção para imóveis de “alto padrão”: Uma das maiores inovações é a regra para a “casa de morada de alto padrão”. O texto permite que tal imóvel seja penhorado e vendido, garantindo-se ao devedor metade do valor de mercado. A definição de “alto padrão”, contudo, é um conceito jurídico indeterminado, o que transferirá ao juiz, em cada caso concreto, a responsabilidade de decidir se um imóvel se enquadra na categoria, abrindo margem para uma potencial diversidade de interpretações e insegurança na aplicação da norma.

Outras mudanças relevantes na execução

Além das profundas alterações no bem de família, a proposta impacta outro pilar da impenhorabilidade: a proteção da renda. A mudança mais sensível reside na inversão da lógica atual.

Atualmente, o art. 833 do CPC protege salários e remunerações, sendo a penhora uma exceção, ainda que mitigada pela jurisprudência do STJ para rendas maiores. O projeto propõe uma nova regra: a proteção absoluta de apenas um salário-mínimo.

Na prática, isso significa que qualquer valor que exceda esse patamar estaria, a princípio, sujeito à penhora. A consequência processual é uma provável inversão do ônus da prova: em vez de o credor ter que demonstrar a possibilidade da penhora como exceção, caberia ao devedor o encargo de comprovar que a constrição sobre o valor excedente ao salário-mínimo comprometeria a sua subsistência digna.

A importância da consultoria jurídica especializada

As alterações propostas ao Código Civil são profundas e redefinem conceitos fundamentais da responsabilidade patrimonial e da dignidade do devedor. A introdução de novos conceitos como “patrimônio mínimo existencial” e “casa de alto padrão”, somada à aparente sobreposição com normas já existentes, como o CPC e a Lei do Bem de Família, criará um cenário jurídico complexo.

Nesse contexto, tanto para o credor que busca a satisfação de seu crédito quanto para o devedor que visa proteger seu patrimônio essencial, a orientação de um advogado especialista torna-se indispensável. Um profissional qualificado será fundamental para:

  • Interpretar a interação entre as novas regras do Código Civil e as leis processuais e especiais vigentes.

  • Construir teses jurídicas para defender o que se enquadra como “patrimônio mínimo” ou para argumentar sobre a penhorabilidade de determinados bens.

  • Navegar pela incerteza de conceitos abertos como “alto padrão” garantindo a defesa dos interesses do cliente com base na equidade e na isonomia.

Seja para planejar o futuro patrimonial ou para lidar com uma execução em andamento, compreender as nuances desta reforma será crucial, e o suporte de uma consultoria jurídica especializada será o diferencial para a proteção efetiva de direitos.


Referências

BRASIL. Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8009.htm [acesso em: 26/06/2025].

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9889374&ts=1742333124147&rendition_principal=S [acesso em 25/06/2025].

FREDERICO, Paulo Eduardo. Impenhorabilidade e responsabilidade patrimonial no anteprojeto de reforma do Código Civil. In: Jornal da USP, 04/09/2024. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/impenhorabilidade-e-responsabilidade-patrimonial-no-anteprojeto-de-reforma-do-codigo-civil/ [acesso em: 26/06/2025].

Paulo Eduardo Frederico

Doutorando pelo Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi bolsista de doutorado pelo Programa de Excelência Acadêmica da Capes e de iniciação científica pela Fapesp. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP com período de intercâmbio acadêmico na Universidade de Munique, na Alemanha (LMU).

Membro acadêmico associado da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP). Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP).

Presidiu, em 2024, a Comissão de Direito Civil da 101ª Subseção da OAB/SP.

Advogado em São Paulo.

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