Como fazer um testamento válido e assegurar sua eficácia?

A sucessão testamentária representa uma das mais importantes manifestações da autonomia privada no âmbito do Direito das Sucessões, permitindo que o indivíduo disponha de seu patrimônio para depois de sua morte. Contudo, essa liberdade não é absoluta. O ordenamento jurídico brasileiro, buscando harmonizar a vontade do testador com a proteção da família e a segurança jurídica, impõe uma série de requisitos e limites que, se não observados, podem levar à invalidade ou ineficácia do ato de última vontade.

O conceito e a natureza jurídica do testamento

A sucessão testamentária pode ser definida como o conjunto de normas que rege a transmissão do patrimônio de uma pessoa falecida com base em um testamento válido. O testamento, por sua vez, é um negócio jurídico unilateral, personalíssimo, solene e essencialmente revogável, pelo qual alguém, nos termos da lei, dispõe de seus bens, no todo ou em parte, para depois de sua morte.

A sua natureza de ato solene implica que sua validade depende estritamente da observância das formalidades prescritas no Código Civil. A inobservância dessas formalidades acarreta a nulidade do testamento, o que faz com que a sucessão seja regida pelas regras da sucessão legítima, como se testamento algum existisse, podendo frustrar completamente o planejamento sucessório do falecido.

As formalidades essenciais dos diferentes tipos de testamento

O Código Civil brasileiro prevê formas ordinárias e especiais de testamento. As formas ordinárias são as mais comuns e acessíveis em situações normais:

  • Testamento Público: Considerado o mais seguro, é lavrado por um tabelião de notas em seu livro próprio, de acordo com as declarações do testador, na presença de duas testemunhas. O tabelião, dotado de fé pública, lê o documento em voz alta para o testador e as testemunhas, conferindo grande força probatória ao ato. Sua disciplina encontra-se nos artigos 1.864 a 1.867 do Código Civil.

  • Testamento Cerrado: Também conhecido como “secreto” ou “místico”, é escrito pelo próprio testador (ou por outra pessoa a seu rogo) e levado a um tabelião para aprovação, na presença de duas testemunhas. O tabelião não tem acesso ao conteúdo das disposições, apenas lavra o auto de aprovação no próprio instrumento, lacrando-o e costurando-o. Após a morte do testador, o testamento deve ser apresentado ao juiz para o procedimento de abertura, registro e cumprimento (artigos 1.868 a 1.875 do Código Civil).

  • Testamento Particular: É a forma mais simples, porém a mais frágil. Deve ser inteiramente escrito e assinado pelo testador e lido na presença de, no mínimo, três testemunhas, que também o assinarão. Após a morte do testador, sua eficácia depende de confirmação judicial, com a oitiva das testemunhas que o subscreveram (artigos 1.876 a 1.880 do Código Civil).

Existem, ainda, os testamentos especiais (marítimo, aeronáutico e militar), previstos para situações excepcionais em que o testador se encontra em viagem a bordo de navio ou aeronave, ou em campanha militar, e não pode recorrer às formas ordinárias.

Limites materiais à liberdade de testar

Imaginemos um caso fictício em que Caio, viúvo, falece deixando dois filhos e um patrimônio líquido de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais). Em seu testamento, Caio deseja deixar uma grande parte de seus bens para uma instituição de caridade que sempre apoiou.

  • Patrimônio Total: R$ 2.000.000,00

  • Herdeiros Necessários: Dois filhos.

  • Legítima (50%): R$ 1.000.000,00. Este valor deve, obrigatoriamente, ser dividido igualmente entre seus dois filhos, cabendo R$ 500.000,00 a cada um.

  • Parte Disponível (50%): R$ 1.000.000,00. Este é o montante que Caio tem plena liberdade para destinar em testamento à instituição de caridade. Se Caio, em seu testamento, destinasse R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) à instituição, essa disposição seria considerada uma “liberalidade inoficiosa” na parte que excedesse a porção disponível. A cláusula não seria, a princípio, anulada por completo, mas reduzida ao limite legal, garantindo que os filhos recebessem sua legítima.

Vale ressaltar que a condição de herdeiro do cônjuge e o seu direito à meação são institutos distintos. A meação é o direito do cônjuge (a depender do regime de bens) à metade do patrimônio comum do casal, não sendo herança, mas um direito próprio decorrente do fim da sociedade conjugal pelo falecimento. A herança incidirá sobre a outra metade dos bens comuns e sobre os bens particulares do falecido.

A distinção entre herdeiro testamentário e legatário

O testador pode beneficiar pessoas por meio de duas figuras distintas:

  • Herdeiro testamentário: É aquele que sucede a título universal, recebendo uma fração ideal (uma porcentagem ou a totalidade) da herança. Ele responde pelas dívidas do espólio na proporção da parte que lhe couber.

  • Legatário: É aquele que sucede a título singular, recebendo um bem certo e determinado, individualizado pelo testador. É o chamado legado. O legatário, em regra, não responde pelas dívidas da herança.

Continuando com o mesmo exemplo fictício, suponhamos que, dentro de sua parte disponível de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), Caio tenha feito as seguintes disposições em seu testamento:

  • “Deixo 50% da minha parte disponível para meu sobrinho, Tício”. Tício, nesse caso, é herdeiro testamentário, pois recebe uma fração ideal.

  • “Deixo meu apartamento de veraneio, avaliado em R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais), para minha afilhada, Mévia”. Mévia é legatária, pois recebe um bem específico.

  • “Deixo a quantia de R$ 100.000,00 (cem mil reais) para meu amigo de longa data, Semprônio”. Semprônio também é legatário, recebendo um legado em dinheiro.

Disposições testamentárias especiais e codicilos

O testamento também é o veículo para outras disposições, como a instituição de um legado sob condição ou encargo, ou a nomeação de um tutor para um filho menor. Além do testamento, a lei prevê a figura do codicilo (artigos 1.881 a 1.885 do Código Civil), um escrito particular, datado e assinado, pelo qual o autor da herança pode fazer disposições sobre seu funeral, deixar esmolas de pouca monta, ou legar móveis, roupas ou joias de pouco valor e de uso pessoal.

A importância da consultoria jurídica especializada

Vale, por fim, ressaltar o impacto do testamento no procedimento sucessório. Historicamente, a existência de um testamento impedia a realização do inventário pela via extrajudicial, mais célere e econômica. Contudo, uma interpretação consolidada do Código de Processo Civil de 2015, amparada por normativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), alterou esse paradigma. Hoje, mesmo na presença de um testamento, o inventário pode ser realizado em cartório, desde que todos os herdeiros sejam capazes, estejam em consenso, e obtenham uma autorização judicial prévia. Este procedimento híbrido — com uma breve chancela do Judiciário para validar o ato de vontade e, então, seguir para a via administrativa — representa um grande avanço, harmonizando a segurança jurídica com os princípios da celeridade e da desjudicialização.

Portanto, a elaboração de um testamento é um ato de extrema relevância e complexidade. A interseção entre a autonomia do testador e as rígidas normas de ordem pública exige um conhecimento técnico aprofundado para garantir que a vontade do falecido seja, de fato, cumprida. A assistência de um advogado especialista é fundamental não apenas para a escolha da forma testamentária mais adequada e para a observância das solenidades legais, mas também para orientar o testador sobre os limites de sua liberdade de dispor, evitando a elaboração de cláusulas nulas ou redutíveis que poderiam gerar longos e custosos litígios judiciais entre os herdeiros, desvirtuando o propósito pacificador do planejamento sucessório.


Referências

CAMARGOS, Gabriela Marcondes Laboissière, GUERRA, Roberta Monteiro de Paula. Mitigação do formalismo do testamento particular. In: Jota, 29/08/2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/mitigacao-do-formalismo-do-testamento-particular [acesso em: 03/07/2025].

KÜMPEL, Vítor Frederico, VIANA, Giselle de Menezes. O inventário extrajudicial ante a existência de testamento. In: Migalhas, 26/11/2019. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/315898/o-inventario-extrajudicial-ante-a-existencia-de-testamento [acesso em: 03/07/2025].

NEVARES, Ana Luiza Maia. O testamento e sua intrumentalidade no planejamento sucessório: limites e potencialidade. In: D. C. TEIXEIRA (Coord.). Arquitetura do Planejamento Sucessório, Tomo 2. Belo Horizonte: Forum, 2023. pp. 447-465.

SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil, vol. 6. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. §§ 472-479.

Paulo Eduardo Frederico

Doutorando pelo Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi bolsista de doutorado pelo Programa de Excelência Acadêmica da Capes e de iniciação científica pela Fapesp. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP com período de intercâmbio acadêmico na Universidade de Munique, na Alemanha (LMU).

Membro acadêmico associado da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP). Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP).

Presidiu, em 2024, a Comissão de Direito Civil da 101ª Subseção da OAB/SP.

Advogado em São Paulo.

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