Como a reforma tributária alcança bens no exterior?

A Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro 2023, fruto da Reforma Tributária, redesenhou a fronteira fiscal brasileira, alcançando de forma definitiva os patrimônios mantidos por brasileiros no exterior. Por décadas, a tributação de heranças e doações de ativos internacionais foi uma área cinzenta, mas as novas regras, combinadas com outras mudanças legislativas, criam um cenário de maior controle e exigem uma reavaliação completa do planejamento sucessório internacional.

Do vácuo legal à tributação efetiva

Para entender a dimensão da mudança, é crucial comparar o antes e o depois.

  • Antes da Reforma: O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 825 de Repercussão Geral, declarou que os estados não poderiam cobrar o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) sobre bens no exterior. A razão era a ausência de uma Lei Complementar federal que regulamentasse essa cobrança, conforme exigido pelo art. 155, § 1º, III, da Constituição. Na prática, isso criou um vácuo legislativo que beneficiava a sucessão de ativos internacionais, que frequentemente não sofriam tributação no Brasil.

  • Depois da Reforma (EC nº 132/2023): A Reforma Tributária preencheu essa lacuna diretamente na Constituição. Ela alterou o artigo 155 para autorizar explicitamente a cobrança e, mais importante, definir a competência para arrecadar o imposto, eliminando a “guerra fiscal” entre os estados.

As novas regras do jogo: onde o imposto é devido?

Para evitar disputas, a reforma estabeleceu regras de competência claras, eliminando a prática de escolher o foro do inventário com base na alíquota mais favorável. Agora, o imposto será devido:

  • Bens imóveis: Ao estado onde o bem está situado, mesmo que no exterior.

  • Bens móveis em caso de herança: Ao estado onde o falecido era domiciliado.

  • Bens móveis em caso de doação com doador no exterior: Ao estado onde o donatário (quem recebe a doação) tem domicílio.

  • Bens móveis em caso de doação com doador no Brasil: Ao estado onde o doador (quem faz a doação) tem domicílio.

Na prática, por exemplo, se um indivíduo domiciliado em São Paulo falecer, deixando uma carteira de ações em uma corretora nos Estados Unidos, o ITCMD será devido ao estado de São Paulo. Antes da reforma, essa cobrança era inconstitucional.

Qual a alíquota aplicável? A conexão com a progressividade

A reforma não definiu uma alíquota específica para bens no exterior. Em vez disso, determinou que o imposto será regido pela legislação do estado competente. Isso significa que a sucessão de ativos internacionais está agora sujeita a duas importantes mudanças simultâneas:

  1. Progressividade obrigatória: Todos os estados brasileiros são obrigados a adotar alíquotas progressivas para o ITCMD, que aumentam conforme o valor do patrimônio.

  2. Teto de 8% (com risco de aumento): A alíquota máxima permanece, por enquanto, em 8%, conforme resolução do Senado Federal. Contudo, tramita o Projeto de Resolução do Senado nº 57, de 2019, que propõe elevar esse teto para 16%.

Portanto, a mesma carteira de ações nos Estados Unidos do exemplo anterior será somada à base de cálculo dos bens no Brasil e tributada pelas faixas de alíquotas progressivas do estado de São Paulo.

A controvérsia atual: a Emenda Constitucional precisa de Lei Estadual?

Apesar da clareza da Emenda Constitucional, surgiu uma controvérsia: a cobrança pode ser imediata ou depende de uma nova lei estadual?

Com base no princípio da legalidade tributária (art. 150, I, da CF), a instituição de um tributo exige lei em sentido formal. Alguns tribunais têm se posicionado no sentido de que a EC nº 132/2023 é uma norma de autorização, mas não de instituição. Para que a cobrança seja legítima, seria necessária a edição de uma nova lei estadual específica, posterior à Emenda.

Este cenário cria uma janela de insegurança jurídica. Embora seja possível defender judicialmente o não recolhimento na ausência de lei estadual, há um risco de autuações futuras retroativas caso o entendimento se consolide a favor do Fisco.

O risco de dupla tributação

Um dos maiores desafios práticos é a dupla tributação — o risco de o patrimônio ser taxado tanto no Brasil quanto no país onde o ativo se encontra. Para mitigar isso, a EC nº 132/2023 previu que uma futura Lei Complementar definirá as regras para a compensação do imposto pago no exterior.

Contudo, a eficácia dessa compensação depende de dois fatores:

  1. Regulamentação: A Lei Complementar ainda não foi editada.

  2. Tratados Internacionais: O Brasil possui pouquíssimos tratados para evitar a dupla tributação em matéria de herança. Para, por exemplo, países como Estados Unidos e a maioria das nações europeias, não há acordo vigente.

Outras mudanças: a Lei das Offshores

A Lei nº 14.754, de 12 de dezembro de 2023, conhecida como a “Lei das Offshores”, promoveu uma mudança estrutural na tributação de investimentos no exterior, pondo fim a um dos pilares do planejamento patrimonial internacional: o diferimento fiscal. Essa regra permitia adiar indefinidamente o pagamento de imposto sobre lucros gerados em empresas no exterior, desde que não fossem distribuídos ao sócio no Brasil.

Sob a nova lei, os lucros apurados a partir de 1º de janeiro de 2024 por entidades controladas no exterior (como sociedades offshore e trusts) passaram a ser tributados anualmente, a uma alíquota fixa de 15%, diretamente na declaração de imposto de renda da pessoa física controladora, independentemente de sua efetiva distribuição. O conceito de controle foi definido de forma ampla, abrangendo não apenas a maioria do capital, mas também o poder de eleger administradores, considerando a participação de familiares.

Com o fim do principal benefício fiscal, a decisão de manter ou criar uma estrutura no exterior passa a ser guiada por outros fatores. As famílias devem se perguntar:

  1. A estrutura ainda se justifica? A offshore deixa de ser uma ferramenta de eficiência fiscal para ser um instrumento de organização patrimonial, proteção de ativos e acesso a mercados globais. Se esses objetivos não forem prioritários, o custo de manutenção pode não compensar.

  2. Gestão de caixa para pagar o imposto: A tributação automática exige que o controlador tenha liquidez para pagar o IRPF de 15% anualmente, o que impacta o planejamento financeiro da família.

  3. O papel da holding nacional: A holding familiar brasileira, que antes servia como uma espécie de escudo, agora funciona como um centro de governança e organização sucessória para os ativos internacionais, que se tornaram totalmente transparentes para o Fisco brasileiro. Trata-se de uma nova lógica de internacionalização baseada em diversificação e gestão de riscos.

O impacto conjunto da reforma tributária com a Lei das Offshores

A nova tributação, analisada em conjunto com o fim do diferimento fiscal para offshores (Lei nº 14.754/2023), sinaliza um fechamento do cerco sobre o planejamento internacional. O legislador está eliminando as assimetrias que existiam entre ativos domésticos e estrangeiros. A estratégia de manter patrimônio no exterior apenas para fins de elisão fiscal está se tornando inviável.

Isso força uma reavaliação da lógica da internacionalização, que passa a ser motivada por genuína diversificação e acesso a mercados, e não por arbitragem tributária. Um ponto crucial a ser observado é o risco de dupla tributação, pois o Brasil possui pouquíssimos tratados para evitar que o imposto seja cobrado tanto aqui quanto no país onde o bem se localiza. Paradoxalmente, a holding familiar brasileira, despida de seus antigos benefícios fiscais, ganha uma nova relevância: a de um centro de consolidação e governança para ativos globais que agora exigem transparência e tributação plenas.

Próximos passos

A nova realidade fiscal impõe a necessidade de um planejamento sucessório profissional e integrado. A revisão da estrutura de ativos globais é urgente para avaliar os impactos da nova legislação, mitigar o risco de dupla tributação e garantir a conformidade. A governança e a transparência, antes opcionais, tornaram-se condições essenciais para a preservação do patrimônio intergeracional.


Referências

BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc132.htm [acesso em: 05/06/2025]

BRASIL. Lei nº 14.754, de 12 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14754.htm [acesso em: 05/06/2025]

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Resolução nº 57, de 2019. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7965585&ts=1560782415981&disposition=inline [acesso em: 05/06/2025].

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 825 – Repercussão Geral. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=825 [acesso em: 05/06/2025].

MOREIRA, André Mendes et al. ITCMD e bens no exterior: considerações sobre o RE nº 851.108, In: Jota, 06/04/2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/itcmd-bens-exterior-stf [acesso em: 04/06/2025].

Paulo Eduardo Frederico

Doutorando pelo Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi bolsista de doutorado pelo Programa de Excelência Acadêmica da Capes e de iniciação científica pela Fapesp. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP com período de intercâmbio acadêmico na Universidade de Munique, na Alemanha (LMU).

Membro acadêmico associado da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP). Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP).

Presidiu, em 2024, a Comissão de Direito Civil da 101ª Subseção da OAB/SP.

Advogado em São Paulo.

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